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Precisamos deste freak show que virou o Enem?

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Não este não é um post sobre as questões do Enem, mas uma questão acima de todas elas que é se precisamos de um exame como o Enem.

Outro dia vi uma notícia da Índia que eu achei um absurdo. Pais escalavam a parede de um prédio para passar cola para os seus filhos. De acordo com a reportagem assinada pela Associated Press “estudantes do 10º ano faziam um exame padronizado do país, cercados de pressão para que tenham um bom desempenho”.

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Fico imaginando o que um indiano acharia do noticiário local sobre o Enem no último final de semana:

Enem 2015: candidatos correm em Pernambuco

Enem inspira memes na internet; atrasados são alvo de brincadeiras

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Primeiro dia do Enem no Rio teve candidatos atrasados e torcida

E talvez a notícia mais especial de todas do jovem que levou sua geladeirinha de cervejas para assistir de camarote os atrasados do Enem.

E aí talvez vejamos um pouco da nossa crueldade nessa história e em como o atrasado do ENEM virou mais um personagem de humor da cultura brasileiro. De fato sempre rimos de minorias: do gay, do pobre, da loira gostosa burra e agora rimos também dos “atrasados do Enem”.

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Não é um fenômeno local nem temporal, fazemos isso desde sempre. Há relatos da existência de circos de horrores ou Freak Shows desde 1840! Neles pessoas com deficiências físicas ou anomalias genéticas eram expostos como atrações para aguçar a curiosidade. O site Page Not Found mostra uma interessante relação de “atrações deste circo”.

Mas o principal problema nessa história é colocarmos “os atrasados do Enem” no mesmo saco e na mesma categoria. Vejamos então o caso do André Luiz dos Santos Bahia que perdeu pelo segundo ano consecutivo o horário da prova, de acordo com esta reportagem do G1. Já posso até ouvir alguns pensamentos: “burro”, “preguiçoso”, “absurdo”. Mas uma leitura atenta na explicação do André nos dá boas reflexões nas entrelinhas: ”Eu vim de carro, mas eu sai do trabalho. Eu sou autônomo, faço entregas. Fiz minhas entregas até 11h. Tomei banho e vim para cá. Consegui chegar limpinho, mas um minuto atrasado”.

Então vejamos no sábado de manhã ele teve que trabalhar — afinal precisa se sustentar nos outros dias que não tem ENEM — mas não conseguiu conciliar tudo.

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E aí então veremos que se desmembrarmos os “atrasados do Enem” veremos que sim há os descompromissados (preguiçosos, descompromissados, irresponsáveis ou o termo que a sua mente possa criar para eles) mas há também os que lutaram bravamente para chegar para a prova e não conseguiram porque o transporte público ou sistema viário não ajudou. Há aqueles que de tão pressionados pela sociedade internamente boicotaram — muitas vezes sem saber — a sua participação. Há também quem tem um contexto social muito difícil e não fazer a prova é um reflexo disso e há ainda quem está com a vida tão bagunçada que o atraso é um sintoma de tantos outros problemas (entre eles a depressão) que nem daria pra colocar aqui. De fato os atrasados “espetacularizados” tem lá seus motivos para o atraso e nem todos tão engraçados se olharmos a fundo.

Mas porque rimos disso? Rimos de nós mesmos, das vezes que nós chegamos atrasados e nos ferramos. Das vezes que a vida bateu a porta na nossa cara. É uma espécie de sacrifício midiático. Sacrifico aquele ali da vida real para exorcizar o meu “eu atrasado do Enem”. Sim de certa forma em algum momentos fomos aqueles ali se espremendo para entrar pelo portão depois do horário e rimos disso porque é mais engraçado na pele do outro.

Mas o que o ENEM tem a ver com isso?

A “espetacularização” da vergonha alheia não é um mérito do ENEM. Ela está na grande mídia e também nas mídias sociais e nos sites de humor que deitam e rolam ao satirizar aqueles que insistem em ir contra o sistema não é?

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Então o que o ENEM tem a ver com isso? De acordo com o site Educa Brasil em seu Dicionário interativo da Educação:

Avaliação criada pelo Ministério da Educação (MEC) em 1998 com a proposta de analisar as competências e habilidades fundamentais dos alunos do Ensino Médio para a inserção social e o exercício da cidadania, tirando do centro das atenções as disciplinas escolares. A criação do Enem encontra-se no contexto da reforma do Ensino Médio, prevista na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), de 1996, que introduziu importantes mudanças na educação brasileira. (…)
(…)A idéia do Enem é também servir de referência para o professor implementar a reforma do Ensino Médio em sala de aula, desenvolvendo os conteúdos de forma contextualizada e interdisciplinar.

Em 2009 foi introduzido um novo modelo de prova para o Enem, com a proposta de unificar o concurso vestibular das universidades federais brasileiras. Hoje o exame é utilizado por algumas instituições de ensino superior para o processo de seleção — substituindo em tese vários vestibulares.

Ano passado o Exame custou cerca de R$ 453 milhões aos cofres públicos. Neste ano houve um aumento do valor de inscrição e medidas que cortaramcerca de 20% deste valor. De acordo com o Governo Federal 7,746 milhões de pessoas se inscreveram para fazer o Exame neste ano.

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Isso acabou criando uma indústria em torno do exame com cursinhos preparatórios, venda de apostilas e até aplicativos de celular que prometem o sucesso no exame.

E então com todo o exposto precisamos realmente do ENEM?

Antes de mais nada precisamos lembrar que

Não existe modelo de avaliação perfeito

Qualquer outro sistema avaliativo vai ter problemas e reclamações. Além disso temos um país como uma abrangência muito grande e como controlar que o Ensino Médio está uniforme em todo o país e também nivelar a avaliação do conhecimento em escolas públicas e privadas? (acredite já houve um passado em que o ensino público era muito melhor que o privado).

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Fiz essa mesma pergunta no meu Facebook e recebi várias contribuições excelentes sobre o tema. As defesas do exame são válidas e importantes nessa discussão:

“ A LDB da Educação garante a sondagem de como está sendo realizado os ensinos médio nos Estados. ”

“Há de se ter ferramentas de seleção e aprovação dos candidatos por outros meios. Creio que o ENEM, neste caso, seja a mais viável.”

“Útil também para quem não concluiu o ensino médio. É pouco divulgado, mas basta sinalizar na inscrição e qualquer pessoa pode usar o enem como ferramenta para retirar o diploma de ensino médio.”

Ou seja há sim um motivo para o ENEM e este não pode ser perdido de vista. Mas há outras medidas avaliativas? Penso que sim.

Nas escolas esse tema também é recorrente. Como avaliar os alunos? Pouca gente sabe mas existe uma escala chamada Taxonomia de Bloom:

A taxonomia dos objetivos educacionais, também popularizada como taxonomia de Bloom, é uma estrutura de organização hierárquica de objetivos educacionais. Foi resultado do trabalho de uma comissão multidisplinar de especialistas de várias universidades dos Estados Unidos, liderada por Benjamin S. Bloom, no ano de 1956. A classificação proposta por Bloom dividiu as possibilidades de aprendizagem em três grandes domínios:

– o cognitivo, abrangendo a aprendizagem intelectual;

– o afetivo, abrangendo os aspectos de sensibilização e gradação de valores;

o psicomotor, abrangendo as habilidades de execução de tarefas que envolvem o aparelho motor.

Há ainda o conceito de avaliação continuada ou contínua. O site Canal do Educador explica um pouco o conceito:

A avaliação contínua é considerada um método de avaliação onde o aluno é avaliado por inteiro, ou seja, a avaliação não deve acontecer somente ao final de um bimestre através das famosas provas bimestrais. É preciso que o processo de avaliação seja constante.

E no artigo “Avaliar para Educar Melhor” há uma importante lembrança. A avaliação continuada é prevista pela LDB (uma espécie de lei magna da educação):

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), aprovada em 1996, determina que a avaliação seja contínua e cumulativa e que os aspectos qualitativos prevaleçam sobre os quantitativos. Da mesma forma, os resultados obtidos pelos estudantes ao longo do ano escolar devem ser mais valorizados que a nota da prova final.

Nessa discussão toda eu lembre deste vídeo do TED do Sugata Mitra. Ele fala sobre como todo o sistema educacional precisa de mudanças e num dado momento ele fala sobre como fazemos avaliações nos dias de hoje:

A parte reptiliana do nosso cérebro, que fica no centro do cérebro, quando é ameaçada, desliga todo o resto, desliga o córtex pré-frontal, as partes que aprendem, desliga tudo isso. Punições e provas são vistos com ameaças. Nós pegamos nossas crianças, fazemos com que desliguem seus cérebros, e depois dizemos: “Façam”. Por que criaram um sistema como esse? Porque precisavam disso. Houve uma época, na Era dos Impérios, em que você precisava de pessoas que podiam sobreviver sob ameça. Quando você está em uma trincheira sozinho, se você puder sobreviver, você está bem, você passou. Se não, você fracassou. Mas a Era dos Impérios se foi. O que acontece com a criatividade no nosso tempo? Precisamos reajustar esse equilíbrio, da ameça para o prazer.

E bem no começo do vídeo algo que nos leva a pensar:

As escolas produziriam as pessoas que depois se tornariam parte da máquina administrativa burocrática. Elas devem ser idênticas umas às outras. E devem saber três coisas: devem ter uma boa caligrafia, pois a informação é escrita à mão; devem saber ler; e devem ser capazes de fazer multiplicação, divisão, adição e subtração de cabeça. Devem ser idênticas ao ponto de você poder selecionar uma da Nova Zelândia e enviá-la ao Canadá, onde ela seria imediatamente funcional. Os Vitorianos eram grandes engenheiros. Eles criaram um sistema tão robusto que ainda está conosco hoje, continuamente produzindo pessoas idênticas para uma máquina que não existe mais. O império se foi, então o que estamos fazendo com esse modelo que produz essas pessoas idênticas, e o que vamos em seguida, se algum dia fizermos algo diferente com isso?

É notório que no passado quando o Enem foi criado não teríamos tecnologia para integrar todo sistema nacional de notas e fazer um grande cruzamento de dados com algoritmos que garantam uma avaliação continuada do desempenho do aluno em toda sua vida escolar no Ensino Médio e não só em uma prova que começa com uma corrida desesperada antes do fechamento do portão — pelo menos não teremos funcionários que chegam atrasados nas fábricas não é?

Além disso quantos talentos criativos não são desperdiçados porque não encaixaram no “sistema”. Não ser bom no ENEM é não prestar para a vida acadêmica? É ser um ser humano pior que outros seres humanos? Me parece que não.

De forma que depois de tudo isso só me resta dizer que acho que até então o ENEM pode ter cumprido seu papel, mas temos que discutir com urgência uma evolução de todo este processo ou senão ano que vem veremos filas de cadeiras de praia e ambulantes vendendo água de coco, cerveja, refrigerante, água e amendoim para quem foi na porta da escola ver o espetáculo dos atrasados do ENEM.

Podia ser um espetáculo de comédia, mas ainda o vejo como de drama.

Armindo Ferreira é empresário e educador há mais de oito anos no Ensino Superior. Autor do Livro : COMUNICAÇÃO E APRENDIZAGEM — MECANISMOS, FERRAMENTAS E COMUNIDADES DIGITAIS.

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