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O mercado milionário da dublagem brasileira

“A dublagem brasileira vai ser obrigada a passar por uma reformulação em breve”.
A frase acima identificada com as devidas aspas não é minha, mas da  Rayani Immediato uma das fundadoras da Sociedade Brasileira de Dublagem (a outra fundadora é a Mabel Cezar que entre dezenas de trabalhos assina a locução oficial feminina da Rede Globo).
Rayani Immediato é dubladora e tradutora para dublagem. É formada em Bacharelado em Tradução pela PUC-Rio. Trabalhou no Controle de Qualidade de Tradução da Globosat durante 2 anos e se especializou em Dublagem. Já traduziu vários filmes e séries como Catfish, 30 Rock, Meninas Superpoderosas, Miraculous – As Aventuras de Ladybug, Grease Live, O Boneco e Macbeth. Deu a voz à Zircônia em Orange is The New Black; Sonya em Maze Runner Prova de Fogo; Elise no game World of Warcraft, entre outras.

Você pode conhecer mais sobre a SBD aqui.

E justamente essa semana (29 de junho) comemora-se o dia do Dublador e por conta disso Blog do Armindo quis entender um pouco mais do mundo dos negócios por trás da dublagem. A descoberta é fantástica. Assim como outros segmentos da indústria criativa brasileira trata-se de um mercado milionário e que passa por um momento de reformulação – assim como outros mercados já ouvidos por este blog.
Para quem está acostumado a ouvir a Rayani Immediato em seus inúmeros trabalhos e personagens a entrevista a seguir é um presente ao leitor que poderá conhecer um pouco mais desse universo e também uma voz que é poucas vezes ouvida: a da mulher de negócios da dublagem.
Boa leitura.


Entrevista com Rayani Immediato fundadora da Sociedade Brasileira de Dublagem (SDB)

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Como é o mundo dos negócios por trás da dublagem. Exige negociação com estúdios no exterior? Pré-aprovações de vozes? Contratos de direitos autorais que duram décadas eu imagino. E dá pra falar em números, ou seja em quanto esse setor contrata, fatura e gera impacto para a economia nacional?
O business por trás da dublagem é bem grande. Existem os estúdios de dublagem e as escolas de dublagem, como nós, ou seja, existem formatos diferentes para fazer esse ecossistema funcionar. Quando falamos de escolas falamos da alimentação do mercado com profissionais capacitados e quando falamos dos estúdios falamos da operação e execução da dublagem.
O estúdio de dublagem funciona como uma produtora que capta o trabalho de um Distribuidor. Então temos distribuidores internacionais como Warner, Disney, Paramount, Nickelodeon e distribuidores nacionais como a Globosat , a Globo e o SBT. O estúdio é um prestador de serviço para esse distribuidor e cada estúdio cobra um preço para dublar o produto. Normalmente é calculado um valor por minuto e os estúdios no eixo Rio – São Paulo tentam manter o valor dentro de uma faixa de preço para não prostituir o mercado, quebrar ou perder o trabalho.
Uma vez que o estúdio capta o trabalho, o cliente (distribuidor) vai indicar se quer testes de voz para os personagens principais daquela produção ou não. Essa decisão é a cargo do cliente e muitas vezes para as produções que são consideradas importantes para a programação e a exibição daquele distribuidor são feitos testes de voz com alguns dubladores para que o cliente aprove e escolha as vozes da produção.
Já os dubladores prestam serviço para o estúdio de dublagem. São freelancers e são escalados por produção. Então cada dublador pode prestar serviço para vários estúdios diferentes e cada estúdio tem uma gama de vozes que pode escalar.
Houve uma época em que os dubladores eram contratados de carteira assinada pelos estúdios. E hoje, o Ministério do Trabalho está tentando voltar com essa prática. O que aconteceu é que cada estúdio tinha um número X de contratados. Por exemplo, 100 dubladores de carteira assinada. Mas quando chegava um filme novo e uma novela nova, o dono do produto, cansado de ouvir as mesmas vozes, sempre pedia por vozes novas. Então os estúdios eram obrigados a contratar novos dubladores.
Chegou um período em que a Herbert Richers, por exemplo, tinha uma folha de pagamento gigante e quebrou. E outras gigantes como Álamo e VTI fecharam antes de falir.
[bs-quote quote=”É uma conta básica, se o estúdio cobrar mais alto para o distribuidor, a dublagem não é feita porque o preço do Brasil fica muito mais alto do que nos outros países do exterior. Se o estúdio cobra o preço de mercado hoje e ainda tem que contratar 300 dubladores, ele quebra.” style=”default” align=”right” author_name=”RAYANI IMMEDIATO” author_job=”Fundadora da Sociedade Brasileira de Dublagem” author_avatar=”http://blogdoarmindo.com.br/wp-content/uploads/2018/06/Rayani_square.jpg”][/bs-quote]
É uma conta básica, se o estúdio cobrar mais alto para o distribuidor, a dublagem não é feita porque o preço do Brasil fica muito mais alto do que nos outros países do exterior. Se o estúdio cobra o preço de mercado hoje e ainda tem que contratar 300 dubladores, ele quebra.
Então a dublagem brasileira vai ser obrigada a passar por uma reformulação em breve. Mesmo contra a vontade de alguns. Porque ou ela vai quebrar ou ela tem que se reinventar.
Vou dar o exemplo do Game. O game tem valores e práticas diferentes da dublagem porque é considerado localização e não dublagem. O game no Rio de Janeiro tinha um valor determinado pelo acordo coletivo de dublagem do SATED RJ. Esse valor, na conta final pro Distribuidor internacional, às vezes dava 1 milhão de dólares mais caro do que nos outros países.
Já o acordo coletivo de dublagem de São Paulo determinava outra forma de pagamento, que no cálculo final, ficava mais barato para o distribuidor. Mais coeso com o que ele encontrava em outros países. Então alguns distribuidores de games deixaram de dublar game no Rio e levaram os trabalhos para São Paulo. O resultado é que o trabalho de game no Rio caiu absurdamente e o acordo do Rio teve que se igualar ao de São Paulo para manter o mercado, ou seja, foi obrigado a se reinventar.
Não consigo te dar números exatos, mas a dublagem movimenta milhões por ano na economia Brasileira. Mas confesso que é um desafio atrair trabalho para cá uma vez que os estúdios têm despesas altíssimas com impostos e mão de obra no Brasil.
Sobre contratos de direitos autorais, hoje, toda exibição precisa de Direitos Autorais. É uma forma do Distribuidor garantir os direitos legais sobre as vozes que serão colocadas na produção. Então os dubladores estão acostumados a assinar contratos quase diariamente para executar os trabalhos. Normalmente cada obra tem seu contrato e é determinada por um período de anos. Os dubladores assinam contratos abrindo mão dos direitos de vozes por 5, 10, 20 e até 70 anos.
[bs-quote quote=”Então os dubladores estão acostumados a assinar contratos quase diariamente para executar os trabalhos. Normalmente cada obra tem seu contrato e é determinada por um período de anos. Os dubladores assinam contratos abrindo mão dos direitos de vozes por 5, 10, 20 e até 70 anos.” style=”style-1″ align=”center” author_name=”RAYANI IMMEDIATO” author_job=”Fundadora da Sociedade Brasileira de Dublagem” author_avatar=”http://blogdoarmindo.com.br/wp-content/uploads/2018/06/Rayani_square.jpg”][/bs-quote]
A popularidade de serviços como Netflix impactou de forma positiva ou negativa o mercado de dublagem no Brasil?
Eu enxergo como forma positiva. O trabalho só aumenta em quantidade. O Netflix tem muitas programações estrangeiras e que demandam dublagem. Mas existem dubladores antigos que reclamam porque hoje o trabalho está pulverizado. Só que um estúdio só não dá conta mais de toda a demanda. Temos vários estúdios no Rio, em São Paulo e em Campinas, por exemplo. Então antigamente bastava prestar serviço para poucos lugares porque o trabalho estava concentrado na mão de pouquíssimos estúdios. Hoje são mais de 40 no Brasil.
Outro mercado que está em franca expansão é o de games. Vemos a tentativa frustrada de colocar “celebridades” que não tem formação para atuar como dubladores e o impacto negativo que isso gera de imagem para essas empresas. Esse mercado tem valorizado mais o dublador profissional?
Nós costumamos chamar de Start Talent quando um distribuidor chama um famoso para dublar um filme ou um game. Quando isso acontece é porque o business é diferente. O distribuidor tem interesse que a fama e os seguidores daquele famoso chame atenção para o produto. Só que quando esse famoso não é ator, aí o resultado final não fica legal. Porque a dublagem é pura interpretação e trabalho de ator.
Então quando um cliente desse chama uma celebridade que é ator ele vai ter um resultado bom. Agora, quando não é, é mais risco do tiro sair pela culatra porque a versão brasileira vai ficar “dura” e não passa verdade. Que foi o que aconteceu com Mortal Kombat e Enrolados. Ele atrai um público grande e o público detesta o resultado final.
[bs-quote quote=”Porque quem joga game já tem todo um conhecimento da história daquele personagem, se ele é agressivo ou mais romântico, se é forte ou delicado… tudo isso porque jogávamos esse game antes no original. ” style=”default” align=”left” author_name=”RAYANI IMMEDIATO” author_job=”Fundadora da Sociedade Brasileira de Dublagem” author_avatar=”http://blogdoarmindo.com.br/wp-content/uploads/2018/06/Rayani_square.jpg”][/bs-quote]
Quando falamos de games é mais forte ainda o poder do consumidor. Porque quem joga game já tem todo um conhecimento da história daquele personagem, se ele é agressivo ou mais romântico, se é forte ou delicado… tudo isso porque jogávamos esse game antes no original. E aí se chega uma dublagem ruim, ninguém quer jogar ela dublada. E isso gera um impacto negativo para o distribuidor.
Mas no geral eu acredito que o mercado de game valoriza o dublador profissional. A Blizzard, por exemplo, tem o maior cuidado com a qualidade dos seus produtos.
O Youtube acabou dando uma cara para quem tinha só voz e vejo que alguns dubladores tem aproveitado isso. É um novo nicho a ser explorado por esses profissionais? Isso acabou contribuindo para esse mercado?
O Youtube ter dado rosto às vozes foi muito bom. Acredito que valorizou os profissionais em relação ao público. As pessoas julgavam a dublagem sem saber tudo o que estava por trás e os talentos que davam vida àquelas vozes em português. Então sim, foi incrível e contribuiu. Mas meu sonho é que os distribuidores assistam aos canais dos dubladores, vejam o poder de influência dos profissionais e valorizem os start talents que os dubladores profissionais são. Ou seja, ter dubladores talentosos nos seus produtos é muito mais vantajoso porque a qualidade do produto fica incrivelmente melhor. Não fica só dublado. Fica vivo!

Tenho visto também que todos os eventos de cultura pop que tem sido realizado no Brasil tem dado espaço garantido para os dubladores de personagens queridos por essas tribos. Participações especiais nesses eventos, meet and greets e presenças VIPs também são uma forma de movimentar o mercado do ponto de vista financeiro?
É uma movimentação financeira para o profissional PJ que o dublador é. Toda vez que um dublador é convidado para um evento desse, ele negocia um cachê. Então além do que ele ganha com a dublagem ele é pago também pela presença em eventos. Acho isso incrível porque a dublagem é uma vertente do trabalho de ator. E o ator em TV costuma ser chamado para fazer esse tipo de Job. Presença paga em evento. Então por que não o dublador? Acho ótimo.
Como é o mercado de dublagem do Brasil em relação ao mundo, falando não só sobre técnicas como também tecnologia, onde podemos evoluir mais?
Acabei contanto um pouco na outra pergunta. Nós temos muito talento. Os atores em dublagem do Brasil são incríveis. Mas em tecnologia e funcionamento do mercado podemos evoluir mais.
Como falei, o nosso mercado funciona um pouco diferente do mercado europeu, por exemplo. Acredito que temos muito a aprender com eles. Várias empresas fazem bechmarking para evoluir. A Toyota fez isso. A Ford também. Porque não fazemos também para evoluirmos saudavelmente em vez de esperar o mercado quebrar novamente? Esse é o meu pensamento, sou sempre a favor da evolução, do crescimento e da qualidade da entrega.
Todo mundo pode ser um dublador? Como começar?
A dublagem é uma vertente da profissão do ator. Temos o ator de TV, de cinema, de teatro, de publicidade e de dublagem. É claro que o ator pode exercer várias dessas vertentes, mas para ser dublador tem que ser ator com registro profissional. O engraçado é que tem gente que nos pergunta: se eu fizer um curso rápido só para ter registro ou se tiver um jeito de eu tirar esse registro, posso dublar? E essas pessoas esquecem que ter registro é só uma burocracia. O que conta é a sua interpretação e qualidade de ator. Se você tiver registro de ator, mas não interpretar bem, sua dublagem vai ficar ruim e aquilo vai ficar no ar por anos.  Por exemplo, a Mabel dubla a Tisha Campbell de Eu a Patroa e as Crianças. Se ela não fosse uma excelente atriz na essência, aquilo ia ficar horrível e não faria tanto sucesso.

O que conta é a sua interpretação e qualidade de ator. Se você tiver registro de ator, mas não interpretar bem, sua dublagem vai ficar ruim e aquilo vai ficar no ar por anos.

Então para começar, você precisa ser ator com registro profissional e fazer cursos de dublagem. Quanto mais você se especializar melhor porque é a qualidade da sua dublagem que aumenta. Entrar no mercado de qualquer jeito é ruim porque queima o seu próprio filme. Depois de fazer alguns cursos de dublagem o ator precisa começar um trabalho de visitar os estúdios, conhecer os diretores e produtores daquele estúdio, gravar registro de voz, para apresentar o seu trabalho e começar a ser escalado por esses diretores e produtores do estúdio.
E aí é a pratica, quanto mais você é visto fazendo um bom trabalho, mais você é chamado. É assim que se constrói uma carreira na dublagem.
foto: Divulgação

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